sexta-feira, 22 de março de 2013

«Eleger o governo»

Diz-se muitas vezes em Portugal, creio que por preguiça, que «o governo foi eleito». Em bom rigor constitucional, não é verdade: o governo é nomeado pelo Presidente e apoiado pelo Parlamento. O que me irrita, porém, é que se insinua que os ministros foram «eleitos», quando em Portugal temos a péssima tradição de aceitar que haja ministros que nunca concorreram a eleições, e cuja ligação a partidos ou à própria política se desconhecia antes das eleições.

O exemplo mais flagrante é Vítor Gaspar: antes da segunda quinzena de Junho de 2011, era um perfeito desconhecido da opinião pública. Fora do seu restrito círculo académico e tecnocrático, poucos saberiam quem era. O PSD não anunciara que seria ele o Ministro das Finanças (apostava-se em Catroga). Hoje, graças à tróica e à menoridade intelectual do Primeiro Ministro, será o homem mais poderoso de Portugal nas decisões executivas.

Uma lição que urge retirar é que não deveríamos tolerar que seja nomeado ministro quem não tenha sido eleito deputado na legislatura em que o governo assume funções. Porque faz parte da democracia poder escrutinar, questionar e testar quem poderá vir a ser poder antes de ser poder. Depois, já é tarde.

(Imagem do Público de quarta-feira, via Shyznogud.)

14 comentários :

João Vasco disse...

Isso implicaria logo 20 pessoas que seriam eleitas como deputados e não cumpririam o mandato para que foram eleitas. Não seria problemático?

Sabes de algum país em que funcione uma regra deste tipo?

emece disse...

João Vasco, eu concordo que não se podem formar governos com pessoas desconhecidas, sem qualquer ligação ao eleitorado. Da mesma forma que sou contra a criação de coligações pós eleições, como a que aconteceu com o actual governo de maioria. Acho que então seria igualmente justo 1 partido vencedor com maioria mínima, ser deposto por 2 ou 3 partidos que não tivessem saído vitoriosos das eleições. Para mim, o exemplo ridículo que falei é igualmente válido.

Não sei se a opção mais correcta será ser eleito como deputado, mas não me parece certo a forma como é feita a selecção actualmente. Os portugueses não votam nas pessoas, e deviam-no fazer. Deviam ver as caras das pessoas que estão a eleger para as governar, porque ficar presas a um documento que apenas aponta propostas de governação, que não representa sequer a governação efectiva após eleição, é simplesmente contraproducente.

Qual é o melhor caminho? Não sei... os especialistas em política que o inventem!

Filipe Moura disse...

João, que eu saiba esse sistema funciona no Reino Unido. Seria simples substituir esses 20 deputados pelos seguintes na lista. Concordo com as vantagens descritas pelo Ricardo, mas isso também traria vários inconvenientes.

Anónimo disse...

Mais grave ainda é, quando o primeiro ministro salta fora, cair-nos na rifa um caramelo que ninguém sabe como lá foi parar...

Mas eu vejo as coisas de outra forma. Para mim, eleger é aceitar que o partido mais votado possa organizar um governo a ser autorizado pelo PR a governar.

Eleger não é só botar boletins numa urna. É também, depois das eleições, aceitar que os vencedores dessa eleição são para todos e não apenas para a parte dos eleitores que votaram nos entretanto vencedores.

Ou seja, por muito que não gostemos dos nossos governantes, em quem não votámos, todos aceitamos que são eles de facto os nossos governantes.

Se o PCP, um partido em que nunca votei até hoje, desrespeitar o que prometeu aos eleitores quando foi a votos, à indignação destes não posso senão juntar a minha. Isto tem de valer para todos os partidos.

É um pacto democrático que tem, para além da observância das regras democráticas normais, uma estrutura mestra por demais ignorada que é o programa eleitoral. Não é necessário que um governo seja ilegal ou anti-democrático para ser impugnado pelo Presidente. Bastaria mandar o programa eleitoral às urtigas...

Ricardo Alves disse...

Reino Unido, França, Alemanha. Pelo menos, estes. Creio que implicitamente (regra não escrita) em todos os casos. No Reino Unido, a coisa vai ao ponto de até os secretários de Estado serem deputados. E não renunciam ao mandato por causa disso.

Ricardo Alves disse...

Podes especificar os inconvenientes, Filipe?

Ricardo Alves disse...

«Mais grave ainda é, quando o primeiro ministro salta fora, cair-nos na rifa um caramelo que ninguém sabe como lá foi parar...»

Foi o caso com o Santana Lopes. Nem sequer era deputado, e foi Primeiro Ministro.

«Para mim, eleger é aceitar que o partido mais votado possa organizar um governo a ser autorizado pelo PR a governar.»

Francisco, assim pões todo o poder na mão dos directórios partidários. No limite, pões todo o poder na mão do «césarzinho» que liderar o partido mais votado. Que, pelo teu raciocínio, pode convidar pessoas para o governo pelo único critério de serem seus amigos, parceiros de negócios, etc...

Se se tornar habitual exigir dos governos que só incluam deputados, podes escrutinar quem irá para o governo antes das eleições. E são eleitos, com toda a responsabilidade que isso acarreta.

Por exemplo: imagina que no mês que vem há eleições. Se o Gaspar e o Relvas não estiverem em lugares elegíveis nas listas, isso quer dizer que são, simplesmente, cobardes...

Ricardo Alves disse...

Reino Unido:

http://en.wikipedia.org/wiki/United_Kingdom_coalition_government_2010_to_present#Cabinets

Alemanha:

http://en.wikipedia.org/wiki/Second_Merkel_cabinet

França(*):

http://fr.wikipedia.org/wiki/Gouvernement_Jean-Marc_Ayrault_(2)#Provenance_politique_des_ministres

(*) Descobri que em França há uma «ministra delegada» (equivalente de secretaria de Estado?) que não teve carreira política prévia. Os restantes 16 «ministros delegados» foram eleitos. Os 20 ministros também.

João Vasco disse...

Estamos sempre a aprender. Obrigado pelas respostas.

É uma ideia que faz bastante sentido (se limitada, como dizes, a ministros - secretários de estado já parece um exagero).

Filipe Moura disse...

Nunca teríamos tido ministros como um Mariano Gago (para dar o exemplo que nos é mais próximo, mas há outros), que não se iria sujeitar com certeza a um purgatório de ter que ir para o parlamento se quisesse ser ministro. Tal proposta reserva a política para profissionais da política. É curioso que tu, que tanto quanto sei és contra o serviço militar obrigatório, defendas desta forma o parlamento enquanto serviço militar para ministros.

Anónimo disse...

Ricardo,

«Foi o caso com o Santana Lopes. Nem sequer era deputado, e foi Primeiro Ministro.»

Exactamente. E essa é só metade da infâmia, porque o desertor governa sem ter sido eleito.

«Francisco, assim pões todo o poder na mão dos directórios partidários. No limite, pões todo o poder na mão do «césarzinho» que liderar o partido mais votado. Que, pelo teu raciocínio, pode convidar pessoas para o governo pelo único critério de serem seus amigos, parceiros de negócios, etc...»

Quem diz partido, diz lista. Não tem de ser um partido. Tem é de estar tudo esclarecido em termos de projecto político para a legislatura em causa. Quem é o candidato a ministro, e qual seria a sua pasta.

O executivo a haver, com elementos de dentro e de fora da lista apresentada, tem de ser adiantado com o programa eleitoral. E os deputados devem ser substituídos pela ordem da lista apresentada, caso saiam do parlamento para o governo.

«Se se tornar habitual exigir dos governos que só incluam deputados, podes escrutinar quem irá para o governo antes das eleições.»

É verdade, mas põe completamente de lado a sociedade civil exterior à AR. Não me oponho a que uma pessoa que nunca desempenhou um papel político seja chamada à responsabilidade de governar. Desde que se saiba à partida que é essa pessoa.

Podias dizer que essa pessoa, nesse caso, ficaria integrada na lista, com assento na AR. Sim, faz sentido, mas não me oponho a uma lista composta.

Só não sei o que se faria em termos de escrúpulo democrático no caso de uma remodelação.

Mas mantenho o que digo: eleger não é só contar votos; é a aceitação implícita das regras democráticas. O escrúpulo no método não é a lei mas é a virtude na democracia, e não se poderia esperar outra de todos os cidadãos.

Ricardo Alves disse...

Acontece que eu não confundo o serviço militar e o serviço à República, Filipe. Vê lá tu que eu até acho que o Mariano Gago teria sido melhor ministro se tivesse sido eleito deputado...

Ricardo Alves disse...

Francisco,
concordo plenamente que antes das eleições os partidos devem anunciar minimamente quem serão os responsáveis pelas principais pastas. Que me recorde, o último líder de partido governamental que tentou implementar uma tradição dessas foi o Guterres. Que eu na altura critiquei muito (não por essa razão).

E sim, a «sociedade civil» não deve ser convidada para o governo. Quem quer governar deve sujeitar-se a eleições. Acho que a democracia é isso, não é?

Anónimo disse...

Ricardo,

«Quem quer governar deve sujeitar-se a eleições.»

Não discuto isso. Mas um membro da sociedade civil pode ser apresentado como candidato a ministro, sujeito a eleições e, em caso de derrota eleitoral, não ter de integrar a lista para o parlamento e retomar a sua vida civil. Isto se se apresentar apenas e só como candidato a ministro.

Por outro lado, quem se apresenta como candidato a deputado, vindo da sociedade civil ou do partido, para depois da derrota desertar, deve ser apontado como o cobarde que é. Infelizmente, há exemplos recentes disso também...

Seja como for, se todos os membros das listas forem candidatos a deputados por defeito, isso não nos livra da tirania dos directórios, porque os militantes detestam visceralmente que lhes passem à frente nas listas.