sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O mau aluno


O mau aluno é aquele que não sabe quando o professor está errado.

  • «"Parece haver neste relatório da Comissão Europeia uma certa contradição entre o que são prescrições que a própria Comissão defendeu e depois os resultados que se observam". (...) Neste contexto, Passos referiu como exemplo a redução das transferências para prestações sociais ou o caso do aumento do salário mínimo nacional, criticado no ano passado pela Comissão. "Todos se recordam com certeza que no final do ano passado foi conhecido um relatório da Comissão Europeia sobre a primeira avaliação pós-programa em que anotava enorme desconforto com a decisão do Governo português em ter decidido aumentar o salário mínimo nacional (...) agora depois dessa crítica imensa que fez vem reconhecer que afinal o salário mínimo nacional não tem grande relevância para efeitos de elevação de rendimentos e combate ao risco de pobreza".» (Público)

Custa-me escrever isto, mas se não o fizer rebento: estou fodido com o Costa

Não é por não ter uma atitude mais assertiva em relação ao novo governo grego. O PS parece ter entendido o essencial: a vitória do Syriza traduz a falência das políticas de austeridade, e nada pode ficar na mesma na Europa depois dela. Não esperaria de um governo do PS a vergonhosa vassalagem ao governo alemão e boicote ao governo grego que o governo português tem feito. Mas também não esperaria do PS um apoio incondicional ao Syriza: não é essa a sua natureza. (Aqui esclareço que "o que eu espero do PS" não coincide necessariamente sempre com o que eu pessoalmente acho melhor.) Acho natural um apoio prudente.

Também não é pela trapalhada à volta da isenção das taxas municipais ao Benfica. Este é um daqueles problemas que Costa enfrenta por ter optado (a meu ver, bem) por permanecer à frente da Câmara Municipal de Lisboa. É que pode criticar-se a Câmara de Lisboa pelas ofertas ao Benfica, mas então também se critique a Câmara de Gaia pelas ofertas ao Porto, a Câmara de Braga pelas ofertas ao Braga... Em abstrato agrada-me que a isenção ao Benfica não tenha sido aprovada (por diligências de Helena Roseta, o que dá uma estranha imagem de falta de coesão da coligação), mas não me parece que discutir só a política de uma câmara seja a melhor ideia. Discute-se Lisboa por ser a câmara presidida por António Costa.

É sobretudo pelo discurso miserável que foi feito perante uma plateia de chineses em Portugal. Eu não gosto do investimento chinês no que a China representa: uma ditadura para dentro e um agente do capitalismo selvagem para fora. Sobretudo, não gosto de ver esse mesmo investimento servir para controlar empresas que considero estratégicas, e que o Estado deveria controlar, como tem sido o caso. Acredito que a ocasião não fosse a melhor para ter referido isto, mas para isso mais valia não ter referido nada. Sobretudo da forma que o fez.

Está certo que Costa não referiu que o país está melhor, ao contrário do que tem sido propalado (era o que mais faltava). Mas também não referiu que está pior. Ao contrário dos dois casos anteriores, neste a sua posição não pode ser ambígua. Eu esperava de António Costa que, ao referir o estado do país, nunca hesitasse em referir que está pior. Que não tivesse a mínima dúvida a este respeito, e não se coibisse de exprimir esta opinião fosse em que contexto fosse. Um líder do PS só pode dizer que o país está pior com este governo. Automaticamente. De olhos fechados. É isso que esperam dele as muitas vítimas das políticas deste governo, de que este governo tanto se orgulha.

Alega Costa que em nome do "sentido de estado" não poderia estar a criticar o país em frente a uma audiência estrangeira (de investidores potenciais, presume-se). Mas o mesmo sentido de estado não o pode levar a defender uma coisa perante os portugueses e outra perante os estrangeiros. Num tema tão sensível como este, alguém na sua posição não pode ser ambíguo, mesmo que a sua posição não seja popular. Passos Coelho sabe-o muito bem. Costa cometeu o erro amador de ser ambíguo, e ganhou um sério problema de credibilidade.

Tive o cuidado de distinguir acima o que eu espero do PS daquilo que eu defendo. Esta tergiversação de Costa não corresponde minimamente, obviamente, ao que eu defendo. Mas pior: nem sequer corresponde ao que eu espero do PS. Deste PS, pelo menos. É que foi na esperança de ver responder claramente e sem tergiversações à questão "Portugal está melhor?" que António Costa substituiu António José Seguro à frente do PS.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Razão tem o PCP

O ex-chefe de um delicado serviço do governo (equiparado na linguagem comum a «serviço público», embora não o seja) assumiu publicamente que, sob as suas ordens, se cometiam crimes com plena consciência de serem crimes. (Aliás, existe até nesse serviço um «Manual de como um funcionário do Estado deve cometer crimes», infelizmente desconhecido de quem sustenta criminosos com os seus impostos.)

Parecia que ninguém faria nada. Felizmente, o PCP promete chamar o chefe da pide à Assembleia da República. Esperemos que desta vez a palavra fiscalização se aproxime do seu verdadeiro significado (no passado, houve episódios bastante indignos de um Parlamento de qualquer democracia a oeste de Budapeste). Ou será que o poder político está à espera que o poder judicial prove que o Parlamento ajudou a encobrir crimes contra a privacidade dos cidadãos?

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Fissuras na muralha?

O Syriza pode ainda não ter conseguido uma reestruturação da dívida, mas deu espaço para que as vozes mais críticas do pensamento único austeritário se manifestem: quer as críticas de Jean-Claude Juncker à tróica quer a autonomia de Sigmar Gabriel seriam impensáveis há poucas semanas.

Apontar o dedo aos gregos, porque não foram corajosos como nós e os irlandeses

(variação nos gastos do Estado, antes do serviço da dívida)

domingo, 8 de fevereiro de 2015

O carácter de Pedro Passos Coelho

Recentemente discuti com um amigo meu se o Pedro Passos Coelho é um extremista alucinado com boas intenções (como o seu ex-ministro Vítor Gaspar), ou um indivíduo sem qualquer réstia de escrúpulos ou integridade (como o seu ex-ministro Miguel Relvas), disposto a sacrificar os seus concidadãos no altar da sua ambição pessoal, em nome da sua mesquinha vaidade.

Quem me conhece, sabe que acredito na segunda hipótese.
Por muito que queira combater e considere perigosas as ideias e convicções de Vítor Gaspar, que tanto mal fizeram a este país, é-me fácil ter algum respeito pelo indivíduo.
Não era um indivíduo estúpido (longe disso, pelo que percebi), estava a fazer o melhor que podia e sabia, e qualquer um de nós deve temer estar tão equivocado a respeito da realidade como ele estava.
Mas Pedro Passos Coelho é outra loiça.

I
Ainda muito antes de chegar ao poder já estava envolvido em situações duvidosas com o seu companheiro Miguel Relvas (que, anos mais tarde, tentou manter no governo tanto tempo quanto foi possível).
Desde o que se passou na Tecnoforma, e as respectivas "despesas de representação" não declaradas, até um sem número de cargos de administração que surgem sem currículo que o justifique, entre muitos outros episódios, a verdade é que estamos a falar de um indivíduo cujo passado não inspira confiança.

II
Depois, veja-se o próprio episódio que leva Pedro Passos Coelho ao poder.
O líder do PSD dizia acreditar que a dívida deveria ser paga integralmente, e que portanto seria necessária "austeridade". Se assim fosse, o interesse nacional seria aprovar o PEC IV - uma estratégia de "austeridade leve" - que não criaria uma crise política em cima de uma crise financeira, sem disparar os juros e colocar em causa a solvabilidade do país.
Note-se que eu não estou a defender o PEC IV, ou a criticar quem votou contra o PEC IV. Quem rejeita a estratégia austeritária tinha excelentes razões para votar contra esta via. Mas se Pedro Passos Coelho defendia o pagamento integral da dívida, certamente não iria preferir pagar juros mais altos a troco de nada que não a perda de soberania nacional... e por isso mesmo soube-se que ele iria aprovar o PEC IV.
Mas Marco António Costa disse "ou há eleições no país ou há eleições no PSD". E entre o interesse nacional e a sua ambição pessoal, Passos Coelho não hesitou.
Até o seu correlegionário Durão Barroso teve de reconhecer o prejuízo para o país que adveio da escolha de Passos Coelho.

Mas lembram-se de quando eu disse que única razão aceitável para ser contra o PEC IV seria a de ser contra a austeridade? Aparentemente Passos Coelho concordou comigo, porque teve a distinta lata de comunicar ao país que chumbava o PEC IV porque "chega de sacrifícios!".

Afinal, quem quer a todo o custo aplacar os mercados deve acreditar nos seus critérios, e as extraordinárias subidas de juros após a telenovela criada por Passos Coelho mostram que sua opção teve custos inequívocos e trágicos para Portugal.




III
Se foi em nome do "fim dos sacrifícios" que Pedro Passos Coelho chumbou o PEC IV, esse foi também o mote da sua campanha eleitoral. 
Este indivíduo "governou" durante cerca de três anos a dizer-nos que vivemos acima das nossas possibilidades e que são necessários mais sacrifícios, mas passou uma campanha eleitoral inteira a chorar pelos pobres portugueses demasiado sacrificados.



Nenhuma pessoa com um pingo de pudor e integridade teria aceitado governar como governou após uma campanha destas, ou fazer uma campanha destas acreditando no que disse acreditar ao longo dos últimos três anos.
Para ver este vídeo é preciso ter estômago, e estar preparado para sentir uma aversão à pessoa do nosso primeiro ministro que em muito ultrapassa qualquer divergência ideológica.


IV
A "governação" começou logo com a grande cambalhota discursiva. Passos Coelho começou de imediato a afirmar que os sacrifícios em vez de excessivos eram insuficientes, entre outras supostas "mudanças de perspectiva" (por exemplo: o TGV, que era supostamente uma obra decisiva para o nosso desenvolvimento, quando o que importava era atacar Manuela Ferreira Leite).
Mas o pior nem foi o discurso - foi a acção. Ao longo de um ano fiz uma compilação de fortes indícios (ou provas) de despesismo e corrupção durante a "governação" de Pedro Passos Coelho. Os exemplos eram tantos e tão frequentes que acabei por não encontrar tempo e disponibilidade para continuar este esforço. Alguns destes pontos, sendo da responsabilidade política do primeiro ministro, certamente não serão sua responsabilidade pessoal. 
No entanto, existem vários que nos dizem bastante sobre o carácter e (falta de) integridade de Pedro Passos Coelho, dos quais destaco esta promessa feita a Carlos Pinto, de acordo com o que a Visão nos relata. 


V
No fim, para compor o ramalhete, não posso deixar de falar na atitude "colaboracionista" do actual "governo".
Poder-me-ão responder que esta postura não demonstra a falta de escrúpulos dos actores envolvidos, que ele acreditam que uma atitude não confrontacional (servil) para com os alemães é aquilo que melhor serve o país, e eu terei de concordar que isso é possível.
Aliás, ainda acima digo que Vítor Gaspar - tanto quanto sei - é um indivíduo honesto, e ele próprio defendeu e executou esta estratégia de apaziguamento, levando-a ao extremo.
No entanto, os desenvolvimentos recentes permitem distinguir entre quem defende a estratégia de apaziguamento por acreditar genuinamente na sua incapacidade negocial para defender melhor os nossos interesses de outra forma, e quem o faz por considerar a sua sobrevivência política muito mais importante que o futuro do país.
Falo, claro, da vitória do Syriza e das implicações que traz para Portugal. Um governo que defendesse os nossos interesses (por anti-imperialismo à esquerda, ou patriotismo à direita) estaria hoje a apoiar as pretensões da Grécia, pois elas representam um enorme potencial ganho para Portugal.
Agora que receberam o inesperado apoio de Obama a Hollande, Portugal poderia aproveitar a ocasião para ganhar recursos e fazer poupanças, desperdiçando uma menor fatia do erário público em juros.
Claro que isso implicaria (indirectamente) reconhecer o falhanço da estratégia apaziguadora, mas um governante íntegro que a tivesse conduzido com as melhores intenções preferiria que a sua asneira se tornasse clara do que prejudicar os nossos interesses desta maneira.
Em vez disso, esta gente opta por tratar os seus eleitores como estultos, e falar-lhes nas ninharias que Portugal pode perder se a Grécia não pagar tudo, esperando que ninguém tenha capacidade mental para perceber que o país ganhará várias dezenas de vezes mais do que aquilo que possa perder, caso um cenário desse tipo tenha lugar.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Para começar, convém não confundir a função com a derivada

Tratando-se da evolução do salário mínimo preconizada pelo governo grego, onde o Vítor Cunha vê um delta de Dirac eu vejo uma função de Heaviside.

A questão de cálculo combinatório e a pedagogia liberal

Recordo-me sempre de estar na fila do supermercado na minha rua e ver um cliente à minha frente levar uma grade de garrafas de cerveja. Uma grade retangular, com n colunas e m filas (não me lembro quantas), toda cheia de garrafas iguais (era fácil de ver à vista desarmada). A empregada da caixa, mesmo assim, nervosamente contou as garrafas uma a uma, tentando não se enganar e fazendo a fila perder tempo. Esta empregada até pode eventualmente saber muito bem a tabuada, mas não conhece algo muito mais fundamental: o conceito de multiplicação. (Não sou apologista de calculadoras, mas ter-me-ia deprimido muito menos se a empregada tivesse pegado na calculadora por não se lembrar da tabuada do que assistir ao que assisti.)

Casos como o desta empregada resultam de um ensino focado na memorização e não na compreensão, na abstração excessiva e não na experiência e na ligação a casos concretos. É claro que não se pode cair no outro extremo, e que uma capacidade de abstração tem de ser desenvolvida. Mas creio que esta capacidade só se desenvolve (pelo menos para a maioria das pessoas) depois de passar por experiências concretas. Do particular para o geral. Repito: é importante desenvolver a abstração, mas se se ensina somente focando no abstrato, a maior parte das pessoas tenderá a não perceber e a passar simplesmente a memorizar. Foi provavelmente o que sucedeu com a empregada de supermercado (e com muita gente) e a tabuada.

A já célebre questão dos titulares e suplentes de futebol da PCAA é um bom exemplo de aplicação num problema da vida real do cálculo combinatório. No entanto, estritamente é possível resolvê-la sem nunca o ter estudado (e era isso que era pedido), embora quem o tenha estudado e aprendido mesmo esteja mais à vontade neste tipo de raciocínios. Mas para isso é preciso ter mesmo percebido o cálculo combinatório; haverá muita gente que se lembra da fórmula e das propriedades das combinações, em abstrato (por as ter decorado), mas não se apercebe de que aquela questão é um caso concreto (e uma aplicação direta) de uma dessas propriedades. Tal como a empregada do supermercado não se apercebeu de que aquele era um caso concreto para aplicar a tabuada que tinha aprendido.

Foi por isso com alguma surpresa que li uma apologia da formulação da questão... nos termos mais abstratos. Tal formulação levaria ao favorecimento de quem se recorda da fórmula do cálculo combinatório, em detrimento de quem raciocina perante uma situação concreta. Quem a defende preconiza um ensino com base na memorização e na aplicação de fórmulas e receitas, em detrimento do espírito crítico. Seria equivalente a limitar-se o ensino da Física a equações (e não a saber aplicá-las): bastaria saber debitar as fórmulas da cinemática e F=ma para a mecânica do secundário, ou as equações de Maxwell para o eletromagnetismo na universidade. (Na verdade, há alunos que, quando não sabem resolver os problemas, se limitam a escrever estas fórmulas nos exames, em busca pelo menos de cotação parcial. Pelos vistos há quem pense que quem o faz deveria ter 20!) É bem sintomático da "pedagogia" de "exigência" preconizada por certos e conhecidos setores: transformar os cidadãos em autómatos que não pensam e se limitam a aplicar fórmulas.

Receio bem que seja esse o ensino em grande parte das faculdades de economia, e seja essa a forma de pensar de muitos dos economistas no governo e na Europa. E assim também se justifica o desprezo dos mesmos setores pela investigação fundamental. Esta atitude disfarça-se na capa do "rigor" e das "fórmulas", mas na verdade só revela uma muito deficiente formação em Matemática e ciências fundamentais.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O que a PAAC vem revelar

Já para este blasfemo, a culpa da "indisfarçável estupidez da prova" e do "elevado nível de imbecilidade das perguntas" é da "ilusão pós-revolucionária da escola pública democrática". Esta azia toda deve-se, presume-se, a também não ser capaz de resolver a questãozita de cálculo combinatório. Eu bem digo que seria muito engraçado pôr toda a sociedade, políticos, jornalistas e comentadores à cabeça, a resolver esta prova, e não somente os professores. Os resultados haveriam de ser interessantes.

A Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades e a ignorância de Vasco Pulido Valente

"De qualquer maneira, a pergunta da PACC em que os professores mais falharam acabou por ser a seguinte: “O seleccionador nacional convocou 17 jogadores para o próximo jogo de futebol (para que seria?). Destes 17 jogadores, 6 ficarão no banco como suplentes. Supondo que o seleccionador pode escolher os seis suplentes sem qualquer critério que restrinja a sua escolha, poderemos afirmar que o número de grupos diferentes de jogadores suplentes (é inferior, superior ou igual) ao número de grupos diferentes de jogadores efectivos.” Excepto se a palavra “grupo” designar um conceito matemático universalmente conhecido, a pergunta não faz sentido. Grupos de quê? De jogadores de ataque, de médios, de defesas? Grupos dos que jogam no estrangeiro e dos que, por acaso, jogam aqui? Não se sabe e não existe maneira de descobrir ou de responder. O dr. Crato perdeu a cabeça."

Eu admito que não se saiba cálculo combinatório, e que nem toda a gente consiga discorrer que para cada conjunto de titulares corresponde um (e só um) conjunto de suplentes. Mas chamar a isto "estupidez à solta" só porque não consegue resolver revela quanto Vasco Pulido Valente se considera superior ao resto dos mortais. Se Vasco Pulido Valente não domina algo é porque isso não interessa para nada.

Os comentários de Vasco Pulido Valente sobre a questão de cálculo combinatório estão ao nível dos da querida Mallory da saudosa série "Quem Sai aos Seus" (só percetível para pessoas com mais de 35 anos). Dizer que este indivíduo é completamente tapado é um juízo de facto e não de valor. O que me preocupa é que, tal como este, há por aí muitos comentadores à solta, a perorarem sobre a "dívida", e que diriam sobre esta questão exatamente o mesmo que o Vasco disse.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Carta Aberta de Alexis Tsipras aos Leitores do Handelsblatt

Lida aqui:

«A maior parte de vós, caros leitores do Handelsblatt, terá já uma ideia preconcebida acerca do tema deste artigo, mesmo antes da leitura. Rogo que não cedais a preconceitos. O preconceito nunca foi bom conselheiro, principalmente durante períodos em que uma crise económica reforça estereótipos e gera fanatismo, nacionalismos e até violência.

Em 2010, a Grécia deixou de conseguir pagar os juros da sua dívida. Infelizmente, as autoridades europeias decidiram fingir que o problema poderia ser ultrapassado através do maior empréstimo de sempre, sob condição de austeridade orçamental, que iria, com uma precisão matemática, diminuir drasticamente o rendimento nacional, que serve para pagar empréstimos novos e antigos. Um problema de insolvência foi tratado como se fosse um problema de falta de liquidez.
Dito de outro modo, a Europa adoptou a táctica dos banqueiros com pior reputação, que não reconhecem maus empréstimos, preferindo conceder novos empréstimos à entidade insolvente, tentando fingir que o empréstimo original está a obter bons resultados, adiando a bancarrota. Bastava bom senso para se perceber que a adopção da táctica “adiar e fingir” levaria o meu país a uma situação trágica. Em vez da estabilização da Grécia, a Europa estava a criar as condições para uma crise auto-sustentada que põe em causa as fundações da própria Europa.

O meu partido e eu próprio discordamos veementemente do acordo de Maio de 2010 sobre o empréstimo, não por vós, cidadãos alemães, nos terdes dado pouco dinheiro, mas por nos terdes dado dinheiro em demasia, muito mais do que devíeis ter dado e do que o nosso governo devia ter aceitado, muito mais do que aquilo a que tinha direito. Dinheiro que não iria, fosse como fosse, nem ajudar o povo grego (pois estava a ser atirado para o buraco negro de uma dívida insustentável), nem sequer evitar o drástico aumento da dívida do governo grego, às custas dos contribuintes gregos e alemães.

Efectivamente, passado menos de um ano, a partir de 2011, as nossas previsões confirmaram-se. A combinação de novos empréstimos gigantescos e rigorosos cortes na despesa governamental diminuíram drasticamente os rendimentos e, não só não conseguiram conter a dívida, como também castigaram os cidadãos mais frágeis, transformando pessoas que, até então, haviam tido uma vida comedida e modesta em pobres e mendigos, negando-lhes, acima de tudo, a dignidade. O colapso nos rendimentos conduziu milhares de empresas à falência, dando um impulso ao poder oligopolista das grandes empresas sobreviventes. Assim, os preços têm caído, mas mais lentamente do que ordenados e salários, reduzindo a procura global de bens e serviços e esmagando rendimentos nominais, enquanto as dívidas continuam a sua ascensão inexorável. Neste contexto, o défice de esperança acelerou de forma descontrolada e, antes que déssemos por ela, o “ovo da serpente” chocou  – consequentemente, os neo-nazis começaram a patrulhar a vizinhança, disseminando a sua mensagem de ódio.

A lógica “adiar e fingir” continua a ser aplicada, apesar do seu evidente fracasso. O segundo “resgate” grego, executado na Primavera de 2012, sobrecarregou com um novo empréstimo os frágeis ombros dos contribuintes gregos, acrescentou uma margem de avaliação aos nossos fundos de segurança social e financiou uma nova cleptocracia implacável.

Recentemente, comentadores respeitados têm mencionado a estabilização da Grécia e até sinais de crescimento. Infelizmente, a ‘recuperação grega’ é tão-somente uma miragem que devemos ignorar o mais rapidamente possível. O recente e modesto aumento do PIB real, ao ritmo de 0,7%, não indica (como tem sido aventado) o fim da recessão, mas a sua continuação. Pensai nisto: as mesmas fontes oficiais comunicam, para o mesmo trimestre, uma taxa de inflação de -1,80%, i.e., deflação. Isto significa que o aumento de 0,7% do PIB real se deveu a uma taxa de crescimento negativo do PIB nominal! Dito de outro modo, aquilo que aconteceu foi uma redução mais rápida dos preços do que do rendimento nacional nominal. Não é exactamente motivo para anunciar o fim de seis anos de recessão!

Permiti-me dizer-vos que esta lamentável tentativa de apresentar uma nova versão das “estatísticas gregas”, para declarar que a crise grega acabou, é um insulto a todos os europeus que, há muito, merecem conhecer a verdade sobre a Grécia e sobre a Europa. Com toda a frontalidade: actualmente, a dívida grega é insustentável e os juros não conseguirão ser pagos, principalmente enquanto a Grécia continua a ser sujeita a um contínuo afogamento simulado orçamental. A insistência nestas políticas de beco sem saída, e em negação relativamente a simples operações aritméticas, é muito onerosa para o contribuinte alemão e, simultaneamente, condena uma orgulhosa nação europeia a indignidade permanente. Pior ainda: desta forma, em breve, os alemães virar-se-ão contra os gregos, os gregos contra os alemães e, obviamente, o ideal europeu sofrerá perdas catastróficas.

Quanto a uma vitória do SYRIZA, a Alemanha e, em particular, os diligentes trabalhadores alemães nada têm a temer. A nossa tarefa não é a de criar conflitos com os nossos parceiros. Nem sequer a de assegurar maiores empréstimos ou, o equivalente, o direito a défices mais elevados. Pelo contrário, o nosso objectivo é conseguir a estabilização do país, orçamentos equilibrados e, evidentemente, o fim do grande aperto dos contribuintes gregos mais frágeis, no contexto de um acordo de empréstimo pura e simplesmente inexequível. Estamos empenhados em acabar com a lógica “adiar e fingir”, não contra os cidadãos alemães, mas pretendendo vantagens mútuas para todos os europeus.

Caros leitores, percebo que, subjacente à vossa “exigência” de que o nosso governo honre todas as suas “obrigações contratuais” se esconda o medo de que, se nos derem espaço para respirar, iremos regressar aos nossos maus e velhos hábitos. Compreendo essa ansiedade. Contudo, devo dizer-vos que não foi o SYRIZA que incubou a cleptocracia que hoje finge lutar por ‘reformas’, desde que estas ‘reformas’ não afectem os seus privilégios ilicitamente obtidos. Estamos dispostos a introduzir reformas importantes e, para tal, procuramos um mandato do povo grego e, claro, a cooperação dos nossos parceiros europeus, para podermos executá-las.

A nossa tarefa é a de obter um New Deal europeu, através do qual o nosso povo possa respirar, criar e viver com dignidade.

No dia 25 de Janeiro, estará a nascer na Grécia uma grande oportunidade para a Europa. Uma oportunidade que a Europa não poderá dar-se ao luxo de perder.»