domingo, 10 de maio de 2015

RBI, uma ideia à frente do seu tempo?

Francisco Louçã fez duros ataques à proposta, presente nas linhas programáticas da candidatura LIVRE/Tempo de Avançar, de implementar um Rendimento Básico Incondicional.

Algumas das críticas que fez eram bastante demagógicas e até impróprias de um defensor consistente do estado social (por exemplo, quando se indigna com o facto dos ricos também receberem uma prestação social, como se não fosse essa a argumentação da direita para atacar o SNS e o sistema público de ensino ou pensões), mas não podemos negar a força do seu argumento fundamental: ou bem que um RBI levaria ao quase total desmantelamento do estado social, ou bem que levaria a uma tributação acrescida monstruosa.
Eu já vi mais do que um estudo sobre o impacto do RBI, todos apresentados pelos próprios defensores desta medida, e confirmam as críticas de Louçã: mesmo que algumas prestações sociais sejam reduzidas a um ponto verdadeiramente inaceitável, a carga fiscal teria de disparar. Para a classe média, o IRS poderia entrar na casa dos 70% do vencimento.

Responderão os defensores do RBI que faz pouco sentido fazer as contas desta forma. Sim, a carga fiscal sobe, mas a pessoa agora recebe uma prestação adicional. Assim, o que importa saber é se, fazendo o balanço aos dois efeitos, as pessoas ficam a ganhar ou a perder dinheiro. Que importa que os impostos subam, se em última análise ficamos mais dinheiro ao fim do mês?
E não é nenhum milagre da multiplicação, mas sim pura redistribuição: com alguma progressividade é possível implementar o RBI de forma a que 95% da população fique a ganhar dinheiro, e apenas 5% a perder, isto - claro está - desde que o perfil de rendimentos não mude.

Este contra-argumento é realmente muito forte. Mas acaba por ser muito pouco convincente. As pessoas não acreditam nesse "claro está" - pensam que uma prestação desse tipo alteraria significativamente o perfil de rendimentos. Geralmente estão convencidas que assim que uma prestação dessas fosse implementada, as pessoas teriam muito menos incentivo para trabalhar.
Porquê trabalhar, quando é possível ganhar dinheiro suficiente para sobreviver sem fazer nada? Pior, existe um sentimento de injustiça quase visceral: os que não trabalham estão a viver à custa dos "patetas" que preferem trabalhar.
A isto, os defensores do RBI respondem com uma visão diferente sobre a natureza humana. As pessoas - alegam - gostam de trabalhar, e trabalhariam mesmo que não tivessem de o fazer para sobreviver. Se calhar, trabalhariam a compor músicas, poesias, histórias. Alguns inquéritos - relembram - mostram que cada pessoa assume que as outras apresentariam um comportamento menos industrioso, mas quando falam sobre elas próprias, o rendimento adicional não as levaria a ficar o dia todo sem fazer nenhum: o ser humano gosta de ser útil. As pessoas não teriam menos vontade de trabalhar, talvez até mais.

Neste ponto, não concordo com a generalidade dos defensores do RBI: o senso comum é muito mais certeiro. As respostas das pessoas em inquéritos são enganadoras: além de mecanismos de protecção do ego que levam as que as pessoas se vejam a agir de forma mais decente do que aquela que efectivamente agiriam, ainda temos todos constrangimentos sociais presentes mesmo num inquérito anónimo. Mas se estudarmos o comportamento efectivo das pessoas, e as suas escolhas de profissão/carreira, verificamos que aquelas que recebem algum rendimento não proveniente do trabalho (seja algum tipo de pensão ou prestação social, rendimentos do capital, ou mesmo prémios/heranças) tendem a estar menos dispostas a abdicar do seu tempo de lazer para receber um rendimento acrescido, do que aquelas cujo rendimento provém exclusivamente do trabalho.
Sim, o senso comum está certo: se um RBI surgisse, as pessoas iriam estar menos dispostas a trabalhar. Algumas, mais sóbrias e menos gastadoras, iriam viver exclusivamente dessa prestação.
É verdade que isso não resultaria necessariamente em menos actividade: poderiam estar a escrever os tais poemas, ou fazer voluntariado. Mas no que diz respeito à actividade que queremos pagar para usufruir, desde a recolha do lixo e segurança das ruas até à gestão da base de dados que maximiza a eficácia do armazenamento num qualquer supermercado, existiria realmente uma escassez de mão de obra.

Mas a ironia é precisamente esta. A maior crítica que é feita ao RBI revela precisamente o seu maior potencial.
O RBI é a a resposta mais elegante e livre à questão colocada no texto anterior.
Como responder à nova revolução industrial, à automação cada vez mais prevalecente, já ao virar da esquina? Através do Rendimento Básico Incondicional.
Tal como na revolução industrial anterior, a automação vai destruir inúmeros empregos, e resultar numa diminuição imediata dos salários. Ambos estes fenómenos resultarão numa diminuição da procura agregada que provocará diminuições de salários e empregos adicionais. A redução dos salários levará as pessoas a trabalhar mais horas em piores condições, destruindo ainda mais empregos no processo. A procura agregada desce ainda mais.
Esta situação só pode ser revertida como na revolução industrial anterior: com uma luta social pela mudança das regras do jogo. Mas desta vez, uma redução da jornada de trabalho não resultará: muitos trabalhos são avaliados em termos de objectivos cumpridos, não em termos do número de horas passado nestas ou naquelas instalações.



Mas se um RBI for implementado, menos gente vai querer trabalhar. E se isso acontecer, os salários vão subir. Não são os "trabalhadores" que vão pagar aos "preguiçosos", não será essa a dinâmica: será um processo em que os detentores de riqueza terão de pagar salários superiores, e terão como tal incentivos ainda maiores para automatizar os trabalhos mais desagradáveis e desinteressantes, agora que as pessoas têm muito maior escolha em relação à profissão que querem desempenhar.
A tecnologia conduzirá a um aumento da qualidade de vida e do tempo de lazer e não ao contrário.
Aqueles que dão mais valor à prosperidade do que ao lazer ficarão a ganhar com a subida dos salários, agora que não têm a concorrência daqueles que dão mais valor ao lazer que aos rendimentos, que também ficam a ganhar. E os empreendedores terão vantagem na maior procura agregada que este sistema gera face à alternativa distópica de uma uma sociedade de milhões e milhões de desempregados sem rendimento.
Só os rentistas ficarão a perder - não se pode agradar a todos.

Infelizmente, esta situação só se tornará clara para a maioria da população quando os efeitos da automação forem mais evidentes.
Actualmente é perfeitamente impossível defender, em Portugal, uma medida que levasse a um aumento brutal da carga fiscal, mesmo com a promessa incerta de que os rendimentos líquidos iriam ser muito maiores para 95% da população.
Em Portugal já é difícil defender as prestações sociais que existem, depois de toda a propaganda feita pelos mais poderosos alegando a insustentabilidade destas. Uma prestação que aumentaria a despesa do estado em cerca de 50%, quando tantos cortes inaceitáveis têm sido feitos em nome de poupanças de 0.1% ou 0.2%, não tem qualquer hipótese de ser implementada.

O RBI é uma excelente ideia - e acabará inexoravelmente por ser uma realidade - mas está um pouco à frente do seu tempo.
Como resolver este problema?



Outras vantagens do RBI não mencionadas: ao conduzir a um nível de lazer muito superior, além do efeito directo na qualidade de vida, ocorrerá também uma muito maior participação política, e esse envolvimento conduzirá a uma diminuição da corrupção e aprofundamento da qualidade da democracia.
Por outro lado, o aumento da proporção do rendimento das pessoas que não provém do trabalho tenderá a conduzir indirectamente a um estilo de vida com um impacto ambiental mais reduzido.

Não exporei estas duas consequências, apesar de importantes, porque exigiriam longas explicações e descarrilariam o texto face ao ponto central que quis apresentar, relacionando esta revolução da automação com a revolução industrial anterior. 

2 comentários :

Miguel Madeira disse...

Responderão os defensores do RBI que faz pouco sentido fazer as contas desta forma. Sim, a carga fiscal sobe, mas a pessoa agora recebe uma prestação adicional. Assim, o que importa saber é se, fazendo o balanço aos dois efeitos, as pessoas ficam a ganhar ou a perder dinheiro. Que importa que os impostos subam, se em última análise ficamos mais dinheiro ao fim do mês?"

Além dos problemas que o JV refere depois, há outro - mesmo que, com a prestação, a taxa liquida de imposto acabasse por ser quase nula ou mesma negativa para a maior parte das pessoas, a taxa marginal de imposto (isto é, quanto se paga a mais de imposto por cada euro que se ganha a mais) poderia ser bastante alta, o que provavelmente até teria mais efeitos de desincentivo ao trabalho do que o RBI propriamente dito.

João Vasco disse...

Sim, exactamente.

Quando penso no efeito do RBI como limitador da oferta de trabalho, esse é o efeito mais importante, pois afecta a população em geral, e não apenas a pequena fatia que optaria por "viver" do RBI.