terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Porquê o LIVRE?

Existe quem acredite que o papel do LIVRE se esgotou com o atingir de um dos objectivos pelo qual mais lutou: a convergência à esquerda. Discordo completamente desta perspectiva. Como me sinto pessoalmente empenhado na afirmação do LIVRE e das suas propostas, é com muito gosto que exponho quatro das muitas razões pelas quais me parece que este partido faz falta.


Ecologia:
Já existem em Portugal outros partidos ecologistas (PEV, PAN e MPT). No entanto o LIVRE é o único partido ecologista que une também as seguintes três características: é efectivamente autónomo e independente (ao contrário do PEV); não abdica de uma actuação convergente com as evidências científicas (ao contrário do PAN); e tem um posicionamento progressista ao invés de conservador (ao contrário do MPT).
Aqui, devo antes de mais destacar a semelhança, em vez das diferenças. Qualquer destes quatro partidos prioriza as questões ambientais, o que representa um diagnóstico lúcido face aos desafios ecológicos que o planeta enfrenta. Por exemplo, os riscos associados ao aquecimento global podem resultar em consequências absolutamente catastróficas, ao nível - ou pior - do que aconteceu em qualquer das guerras mundiais. E perante a gravidade e urgência da situação, vemos uma quase completa apatia, uma letargia inadmissível. Neste contexto, priorizar a defesa do meio ambiente é nada menos que bom senso.
No entanto, embora o LIVRE facilmente encontre causas e batalhas comuns com qualquer destes três partidos, em particular em relação a estes desafios graves e urgentes, as diferenças mencionadas são relevantes o suficiente para justificar o seu trabalho em prol do ambiente.


Democracia Interna:
A generalidade dos partidos políticos em Portugal apresenta uma organização excessivamente hierárquica e tradicional. O LIVRE, em parte por ser tão recente, faz uso das várias ferramentas tecnológicas para manter uma organização e um funcionamento muito mais transparente, horizontal e participativo. No LIVRE todos os seus membros têm acesso ao conteúdo das reuniões da Assembleia que os representa, e podem participar directamente na escolha dos candidatos (através de primárias) e na elaboração dos programas eleitorais - quer propondo emendas, quer deliberando a respeito das emendas propostas. Nos Congressos do LIVRE, a regra é: um membro, um voto.
Esta inovação organizacional reflecte-se na qualidade do conteúdo programático, e na actuação do partido no dia-a-dia.

A este respeito gostaria de fazer duas observações:

1) Grande parte dos progressistas portugueses acompanhou com invulgar atenção as eleições primárias do Partido Democrata nos EUA, torcendo pela vitória de Bernie Sanders. Muitos ecoaram a indignação de vários progressistas norte-americanos com a instituição de "Super-Delegados", considerando pouco democrática a influência das cúpulas do partido no processo de selecção do seu candidato. Recorde-se que os Super-Delegados representavam cerca de 20% do número total de delegados e poderiam (em certas circunstâncias) alterar a nomeação contrariando a vontade dos eleitores em geral. Muitos dos portugueses indignados não se aperceberam da ironia que é considerarem esse enviesamento pouco democrático num país onde todos os partidos têm efectivamente 100% de "super-delegados": os directórios partidários simplesmente escolhem os seus candidatos, sem qualquer processo eleitoral.
Perdão, não todos os partidos. O LIVRE constitui a feliz excepção.

2) Os reflexos que a organização interna tem na actuação concreta do partido são particularmente visíveis no PS. Ao longo da minha vida fui verificando um notável divórcio entre as convicções políticas da generalidade dos seus militantes (muitos dos quais mais progressistas e radicais que eu), e a actuação do partido (efectivamente centrista, e várias vezes consideravelmente à minha direita). As posições do PS em relação a tratados como o TTIP e o CETA, que a esmagadora maioria dos seus militantes, se devidamente informados, rejeitariam sem hesitações, são o corolário deste divórcio.
A democracia interna evita que este tipo de «deriva» aconteça no LIVRE, já que ancora a sua actuação nos seus princípios originais e na vontade efectiva dos seus membros e apoiantes.


Esquerda Libertária:
Até recentemente não existia em Portugal nenhum partido que se afirmasse como sendo de esquerda, mas que não encaixasse no enquadramento marxista.
O PS seria o candidato ideal para este efeito, mas eu alegaria que pode falhar ambas as condições. É discutível (e várias vezes os partidos à sua esquerda contestam) que a sua actuação ao longo das últimas duas décadas seja efectivamente de esquerda (considerando o volume de privatizações onde ultrapassa o PSD, o volume de PPPs onde o mesmo acontece, a aprovação do Código do Trabalho, etc.) e não de centro (não de direita, como alguns acusam sem ponderar também as medidas progressistas que efectivamente existiram). Mas, na medida em que a sua actuação foi de esquerda, o enquadramento intelectual e ideológico que inspirou essa actuação foi essencialmente social-democrata.
Pessoalmente tenho o maior respeito pelas ideias sociais-democratas, e longe de mim desqualificar qualquer partido (em particular o PS, BE, PCP) por defendê-las. Pelo contrário.

No entanto, o debate político em Portugal só tem a ganhar em dar espaço a novas ideias progressistas, em particular aquelas que partem de fundamentos ideológicos diferentes, e podem trazer novas propostas e soluções ao palco de discussão.
«Uma esquerda do século XXI» pode ser mais do que um chavão gasto, se vier realmente associado a propostas e iniciativas mais sensíveis aos novos problemas que se colocam - existem diferenças fundamentais entre a sociedade actual e a sociedade do século XIX, de tal forma que muitas soluções podem não passar por uma mera adaptação das ideologias criadas nesse contexto.


Europa: 
Até recentemente existiam em Portugal duas posturas de fundo face ao projecto europeu:

1) Aceitação acrítica.
Partidos como o PS, PSD, CDS e PDR nunca se empenharam numa reforma profunda das instituições europeias. É possível identificar alguma diferença no grau de subserviência face às orientações mais "austeritárias" vindas de algumas instituições europeias (mesmo as informais como o "Eurogrupo") entre PS e a dupla PSD/CDS (qual Miguel de Vasconcelos reencarnado), mas a diferença é mais aparente que profunda.
No essencial, estes partidos encaram a União Europeia como um conjunto de instituições nas quais Portugal não tem agência, e cujas orientações (mesmo que incompatíveis com os tratados originais) são completamente indiscutíveis. O empenho no debate sobre qual o arranjo institucional desejável não existe, e o défice democrático das instituições mal é reconhecido, e muito menos considerado um problema fundamental a resolver.

2) Eurocepticismo irresponsável.
Existem razões sérias para questionar o projecto europeu, e quando tomo contacto com os pontos de vista de partidos como o BE, PCP (entre vários outros) é fácil compreender as suas preocupações. Se no geral a globalização e o comércio internacional (e a UE tem a sua génese num acordo de comércio) já têm servido tantas vezes para erodir o estado social e acentuar as desigualdades, a resposta inepta das instituições europeias à mais recente crise económica reforçou significativamente todas as razões para encarar com cautela o futuro da União Europeia.
A irresponsabilidade deste eurocepticismo surge na completa e total ausência de alternativa realista. Como se dos escombros da UE surgisse magicamente um projecto transnacional progressista; ou como se um estado nação incorporado em tratados de comércio internacionais sem qualquer integração política não se visse sujeito a males muito piores que os que apontam à UE (veja-se o TTIP...); ou como se fosse realista antever um Portugal isolado deste tipo de tratados ou zonas de comércio, com toda a escassez e pobreza que tal isolamento traria tornando insustentável de vez o actual estado-social.
E nem posso ir muito mais longe na análise das alternativas apresentadas, pois elas nunca são devidamente exploradas. Existe um voluntarismo irresponsável: torça-se pela implosão da UE, e depois logo se vê. Quantos empregos isso vai custar, quanto é que o salário médio vai baixar, que alternativas procuraremos é algo que nunca chega a ser devidamente discutido.

Neste contexto, é essencial que o LIVRE traga uma nova abordagem a esta questão. Rejeitando a subserviência a Bruxelas e o conformismo perante o actual quadro institucional, importa rejeitar também um aventureirismo eurocéptico irresponsável.
Importa pois lutar pela transformação das instituições europeias - um 25 de Abril para a Europa - pela sua democratização, pelo reforço da transparência, da prestação de contas, pela criação de políticas concertadas que sejam capazes de adequadamente fazer face a crises como a que vivemos, ou às pressões criadoras de desigualdades que o comércio internacional pode criar se não existir algum grau de integração política.
Muitos dos críticos desta abordagem alegam que não existem condições políticas para considerar este um objectivo realista e concretizável. Eu responderia a essa objecção com duas observações:

i) Que grande vitória progressista é que não começou como um objectivo irrealista e aparentemente impossível? A luta das sufragistas? A luta pela abolição da escravatura? A luta contra o absolutismo? Todas as grandes vitórias progressistas começaram como sussurros de um sonho. As condições políticas para essas vitórias não existiam: criaram-se também com a luta por esses mesmos objectivos.

ii) Se a probabilidade de atingir este objectivo é baixa, qual é a probabilidade de que uma via alternativa leve a um país melhor? Seria importante esclarecer todos os passos dessa via alternativa, e não apenas o primeiro. Facilmente se verificará que subjacentes estão «sonhos» bem menos concretizáveis. E frequentemente nem são os mesmos.

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